Sangue e ferro?
Foi com a pele pálida como uma pérola baça, com uns olhos amargamente humedecidos e com uma expressão de prepelxidade que recebi a trágica notícia.
Através de uma voz sibilante e de aparente mecanização, transmitiram-me que o meu sorriso iria ser encarcerado por de trás de uma prisão metálica, sendo a sua sentença de dois intermináveis anos.
Era como se uma mão invisível me remexe-se nas entranhas.
Com o coração, ameaçando cavalgar me pela garganta acima, apercebi-me que a minha vida social tinha os seus dias contados. O familiar estalido que me tinha vindo a habituar ao longo dos últimos anos dentro da minha boca, tomou proporções colossais, chegando a por em causa a minha integridade em anos vindouros, sobre a forma de surdez, e diversas mazelas corporais, segundo me foi dito.
Embora a cruel contagem decrescente ainda esteja longe do seu fim, já começo com as habituais insónias, os calafrios que começam na nuca e percorrem velozmente a espinha, e os típicos pensamentos saudosistas, próprios de quem se apercebe que vai ser privado de algo que sempre tomou como certo.
Foi ironicamente, numa época em que se respira felicidade e alegria, e o espírito do “dar e receber” é rei e senhor, que eu recebi este fatídico presente do destino.
Pois bem, se dizem que não vale a pena chorar sobre o leite derramado, não me resta então mais nada a não ser uma ténue esperança, que a jovem dentista, se tenha enganado no seu sinistro prognostico, e que tudo isto seja o resultado de uma mente sádica, que tentou condimentar um longo dia passado num consultório monótono e enfadonho.
Caso se venha a confirmar, toda a riqueza do paladar vai se cingir a um sabor metálico, fazendo com que as variadas explosões de sabor, que o comum mortal encara como um direito e não uma bênção, não passem de vagas recordações.
A natureza é cruel.
O ser humano precisa de perder as coisas para lhe realmente dar valor. O que seríamos nós sem a visão, o olfacto, o tacto, o som…e o doce paladar, que já recordo com saudosismo?
A vida é irónica, e por vezes com uma pitada de crueldade.
Enfim após vinte primaveras, vou sentir na minha dentição, o frio sabor do metal, levando-me a invejar a generalidade da humanidade, que teve o privilégio de nascer com maxilares perfeitos.
Agora no conforto do meu lar, refeito do choque e com a noite como conselheira, sinto a tragédia a abater-se sobre mim, como se uma neblina me rodeasse, e o mundo se apresenta-se mais cinzento e sombrio. Sinto que o meu espírito desabadou como uma frágil castelo de cartas.
Á semelhança de um gato, tento lamber as minhas feridas, longe da diabólica clínica, procuro descortinar algo de positivo que teima em não aparecer.
Sem que ninguém compreenda a minha dor, visto que até agora as únicas reacções alcançadas foram de escárnio e de passividade, viro-me para este teclado, tentando sentir algum alívio, mas em vão.
A dramática contagem já começou, e tempo escapa-se entre os dedos, sendo uma questão de semanas até a minha boca se fundir com o aço.