"Temperamento artístico é uma doença que ataca os amadores"

sábado, fevereiro 02, 2008

De volta? à ingrata escrita

Depois de uma longa pausa, que creio ter sido forçada, e à qual muito orgulhosamente gosto de chamar de licença sabática, resolvi, através de um excerto de uma obra sua, deixar que Vinicius de Moraes explique ligeiramente o interregno deste vosso querido espaço cibernético…

«Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crónica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado. (…)

Dias há em que, positivamente, a crónica “não baixa”. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crónicas passadas em busca de inspiração – e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o director do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: “É… não há nada a fazer com fulano…”. Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crónica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores!”. E o negócio sai de qualquer maneira.»

Como nestes últimos meses o “negócio” não saiu de maneira alguma, por mais que quisesse, a única conclusão a que posso chegar é que, infelizmente, nunca passei de um aspirante a cronista…

1 Comments:

Blogger Lucífera opinou...

"Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
essa intimidade perfeita com o silêncio. Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo.
Perdoai: eles não têm culpa de ter nascido.
Resta esse antigo respeito pela noite esse falar baixo
essa mão que tateia antes de ter
esse medo de ferir tocando
essa forte mão de homem
cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade
essa economia de gestos
essa inércia cada vez maior diante do infinito
essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons
esse sentimento da matéria em repouso
essa angústia da simultaneidade do tempo
essa lenta decomposição poética
em busca de uma só vida
de uma só morte
um só Vinícius.
Resta esse coração queimando
como um círio numa catedral em ruínas
essa tristeza diante do cotidiano
ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada
passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
essa imensa piedade de si mesmo
essa imensa piedade de sua inútil poesia
de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância
subitamente desentranhado de pequenos absurdos
essa tola capacidade de rir à toa
esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade,
essa vagueza de quem sabe que tudo já foi,
como será e virá a ser.
E ao mesmo tempo esse desejo de servir
essa contemporaneidade com o amanhã dos que não tem ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar,
de transfigurar a realidade
dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é
e essa visão ampla dos acontecimentos
e essa impressionante e desnecessária presciência
e essa memória anterior de mundos inexistentes
e esse heroísmo estático
e essa pequenina luz indecifrável
a que às vezes os poetas tomam por esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma porta
quem sabe inexistente
e essa coragem indizível diante do grande medo
e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer
dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte
esse fascínio pelo momento a vir,
quando, emocionada,
ela virá me abrir a porta como uma velha amante
sem saber que é a minha mais nova namorada."

by: Vinicius de Moraes

12:01:00 da tarde

 

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