Início de uma nova era
E o pesadelo começa a tomar traços de realidade. A fatídica data, agora abate-se sobre mim como a gélida mão da morte. Tentando ignorar a data, como de um pesadelo, ou uma funesta memória se tratasse, pensando na minha inocência que a altura jamais chegaria, vejo agora estas crenças caídas por terra.
Inevitavelmente o funesto dia chegou.
Tratava-se de um dia nublado, igual a tantos outros típicos desta época. O relógio da pálida clínica assinalava 12h e 47min e pela primeira vez comecei a saborear o verdadeiro sentido da palavra pânico. Lá fora ouvia-se um outrora confortante som do ribombar da chuva no alpendre. Procurei em vão amansar a mente e serenar a alma. O coração cavalgava velozmente dentro do meu peito. Senti as palmas das mãos suadas. Uma cínica personagem de bata profere o meu nome, dizendo que a minha hora tinha chegado. O indomável coração aumenta o seu ritmo frenético. Com uma meia dúzia de passos desajeitados e inseguros, próprios destas situações, chego à “clássica” cadeira do dentista. O peito ameaça rebentar, ao som de uma respiração ofegante. Sobe um olhar penetrante do dentista, timidamente sento-me na cadeira, e vislumbro de relance um tabuleiro repleto de reflexos metálicos que depois de uma visão mais cuidada, transformam-se em silhuetas de diferentes objectos cortantes, trazendo à memoria a imagem de uma carpintaria. A partir desta altura todos os pensamentos se diluem uns nos outros, todas as emoções se fundem, e os nervos tomam-me conta do espírito. Depois de um penoso processo que não me atrevo a descrever, sinto um sabor a sangue a inundar-me a boca. O fluido agridoce precipita-me da boca, escorrendo-me pelo queixo. O coração não mostra sinais de abrandar. Ainda com os olhos cerrados de dor, oiço a voz do dentista em tom paternal, dizendo que tinha perdido o juízo, uma vez que os dentes do siso são sinónimo de juízo, no saber popular.
Ao abrir, uns ate então, escondidos olhos, penso para mim que não só deixei o “juízo” naquela sala, mas também a dignidade, avaliando pelos risos trocistas, que se fizeram acompanhar dos meus desumanos gemidos ao longo da penosa cirurgia, provenientes do dentista e da sua ajudante, e pela face da minha mãe (que fez questão de me acompanhar), escondida por de trás de uma muralha de dedos ainda rindo. E ao reparar na face de diversão da minha progenitora, apercebo-me que devido à sua localização, as ternas festas que senti enquanto me arrancavam impetuosamente dois dentes do siso, pertenciam não à minha mãe mas sim ao dentista.
E então apercebo-me, à medida que o meu corpo se começa a apaziguar, do quão inglório e incompreendido foi o meu tormento.
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